
Em 1971, em meio a uma nação americana convulsionada por guerras, desigualdade social e crescente preocupação ambiental, Marvin Gaye presenteou o mundo com uma obra-prima que transcendeu os limites da música soul. “What’s Going On“, lançado em maio daquele ano, não foi apenas um álbum; foi um manifesto sonoro, um lamento pungente e um chamado urgente à reflexão e à mudança. Quase meio século depois, sua relevância permanece inabalável, ecoando em nossos próprios tempos de incerteza e desafios globais.
Filho de um pastor pentecostal e moldado pela disciplina da Motown, Marvin Gaye já era um astro consagrado com hits açucarados como “I Heard It Through the Grapevine” e duetos românticos com Tammi Terrell. No entanto, a inocência e a leveza de seus trabalhos anteriores começaram a dar lugar a uma profunda inquietação. A crescente politização da contracultura, o horror da Guerra do Vietnã, a crescente consciência sobre a degradação ambiental e as tensões raciais nos Estados Unidos pesaram sobre sua alma.
A faísca criativa para “What’s Going On” surgiu de uma conversa com Renaldo “Obie” Benson, membro do Four Tops, que testemunhou cenas de violência policial contra manifestantes anti-guerra em Berkeley. A indignação de Benson encontrou eco no coração de Gaye, que já vinha amadurecendo suas próprias reflexões sobre o estado do mundo. Juntos, eles começaram a esboçar a canção que daria título ao álbum.
Apesar da resistência inicial da Motown, que temia que um álbum com temática social e política pudesse alienar seu público tradicional, Gaye persistiu em sua visão. Ele co-produziu o álbum, exercendo um controle artístico inédito para um artista da gravadora na época. Essa autonomia permitiu que ele explorasse sonoridades inovadoras, incorporando elementos de jazz, funk e soul de uma maneira fluida e orgânica.
A faixa-título, “What’s Going On”, abre o álbum com uma melodia melancólica e um groove suave, pontuado por saxofones chorosos e vocais em camadas que expressam confusão e angústia. A pergunta repetitiva, “Mother, mother / There’s too many of you crying / Brother, brother, brother / There’s far too many of you dying,” ressoa como um grito de dor diante da violência e da perda.
As nove faixas que compõem “What’s Going On” se interligam de forma quase sinfônica, criando uma narrativa coesa e imersiva. “Mercy Mercy Me (The Ecology)” é um hino de preocupação ambiental, com Gaye implorando por misericórdia para um planeta em sofrimento. “Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)” retrata a dura realidade da vida nas áreas urbanas marginalizadas, com seus problemas de pobreza, criminalidade e falta de oportunidades.
O álbum também explora temas de fé e espiritualidade, como em “God Is Love” e “Wholy Holy”, oferecendo uma perspectiva de esperança e união em meio ao caos. A balada “Save the Children” é um apelo emocionante para proteger a inocência e o futuro das novas gerações.
A produção de “What’s Going On” foi revolucionária para a época. Gaye e sua equipe utilizaram overdubs vocais complexos, arranjos orquestrais sofisticados e uma mixagem que priorizava a ambiência e a emoção em detrimento da perfeição técnica. O resultado foi um som rico, texturizado e profundamente expressivo, que capturava a complexidade das emoções e das questões abordadas nas letras.
O impacto de “What’s Going On” foi imediato e duradouro. Apesar das preocupações iniciais da Motown, o álbum alcançou sucesso comercial e de crítica, solidificando o status de Marvin Gaye como um artista de profunda relevância social e musical. Ele abriu caminho para que outros artistas soul e R&B explorassem temas mais sérios e politizados em suas músicas.
Mais do que um álbum de protesto, “What’s Going On” é uma obra de arte atemporal que nos convida à empatia, à reflexão e à ação. Suas letras perspicazes e sua sonoridade inovadora continuam a ressoar com as lutas e as esperanças de nosso tempo. A mensagem de amor, compaixão e a busca por um mundo mais justo e pacífico permanecem tão urgentes e relevantes hoje quanto eram em 1971. Em um mundo que ainda enfrenta conflitos, desigualdade e crises ambientais, o grito de alma de Marvin Gaye em “What’s Going On” ecoa como um lembrete poderoso de nossa responsabilidade coletiva de construir um futuro melhor.